Prefácio
Prólogo
Ainda não havia amanhecido totalmente quando o rugido despertou o acampamento. Há semanas chovia sem parar, mas aquele som era diferente dos estrondos dos raios que, com certa regularidade, abatiam árvores da floresta. Tudo estava encharcado pela chuva a qual nenhum homem vivo havia visto cair com tanta intensidade e por tanto tempo em Olam. Uma chuva diferente, ácida, com um gosto amargo; ela deixava queimaduras na pele.
Apesar disso, era a primeira noite completa que eu conseguia dormir em tantas... nem sabia mais contar quantas... desde que meu mundo acabara...
— Tzizah! — ouvi chamarem meu nome.
Só precisei de um salto para me por em pé. A trança pronta nos cabelos e a couraça velha com alguns fios de malha desfiados, coberta por uma túnica simples de camponesa, atestavam que estava preparada, como sempre. Inevitável foi pensar quão distante eu estava de exibir a graciosidade esperada da filha de um Melek. A espada veio rápido para minha mão, com a familiaridade só possível entre íntimos. Lembrei-me que outrora essas mesmas mãos só cuidavam de flores... Estas, hoje, poderiam ser minhas armas. Havia descoberto um lado mortal na beleza.
Busquei instintivamente a pedra shoham retangular que pendia do pescoço para dentro da túnica e me preparei para o que quer que fosse... Nada mais poderia me surpreender. Acreditava nisso, mas estava enganada...
A precária cortina usada como porta da cabana foi aberta com a ponta da espada revelando as informações já passadas pelos sons: o acampamento estava em caos. Um tênue amanhecer cinzento se erguia acima das árvores, incapaz de oferecer luz ou esperança. Fiozinhos de neve se misturavam pela primeira vez com a chuva ácida. Aquilo era novidade. O inverno estava atrasado em Olam.
Pisei o pátio encharcado e vi camponeses vestindo roupas de lã correndo apavorados de um lado para o outro entre gritos de assombro e desespero. Havíamos treinado em como proceder em situação de ataque, entretanto constataria mais uma vez o quanto o terror pode encobrir todas as lições.
As sentinelas nas árvores haviam abandonado os postos, deixando o acampamento entregue a si mesmo.
Os rugidos que abalavam a floresta, vindos do lado da aurora, indicavam algo monstruoso avançando em nossa direção, e eu tentava imaginar o que seria dessa vez. O barulho de árvores sendo quebradas e troncos esmagados era assustador o bastante para fazer os mais corajosos tremerem. E já não havia muitos destes entre nós.
As levas de soldados que se ajuntavam a nós foram reduzidas pelos ataques, pelas doenças e feras. Há dois meses nos movíamos de lugar em lugar, uma semana nas montanhas, outra na floresta, depois vales, beira-mar, encostas... Sempre na tentativa de estar um passo à frente dos perseguidores, ignorando o que parecia certo. Haveria esperança depois da queda de Olamir? Depois da partida de meu pai? Eu me perguntava isso todos os dias, mas, mesmo assim, algo em mim se recusava a desistir.
Quando a silhueta imensa surgiu afastando as árvores como se fossem juncos, fiquei paralisada, minhas forças evaporaram. Sabia que precisava correr, mas...
— Um behemot! — ouvi um dos homens gritar as palavras silenciadas em minha boca.
O monstro escaramuçava, derrubava e esmagava tudo em seu caminho. E o acampamento estava no caminho dele.
Mesmo estando diante de meus olhos, não me parecia possível. Não fazia sentido. Não ali.
Estávamos muito longe dos campos de gelo para além das montanhas, onde os behemots viviam, ou pelo menos deviam viver.
Até agora não entendo o que me fez ficar ali imóvel diante dele. Talvez minha mente tivesse percebido que não havia mais tempo de fugir, ou talvez meu coração estivesse tomado pelo fascínio (mesmo que insano) de contemplar algo raramente visto pelos humanos até aquele dia.
O único monstro que mesmo sem soltar fogo era temido pelos que soltavam. Andava sobre duas pernas e possuía braços e garras fortes o suficiente para estraçalhar um elefante. Sua cabeça altiva se sobressaía ao teto verde da floresta. Sobre suas costas, desde a longa cauda até o alto da cabeça, subia uma fileira de espinhos enormes finalizada em cinco ou seis grandes chifres que se elevavam rígidos e pontudos como lanças naturais. A cauda se endurecia como ferro e deixava para trás uma trilha de destruição. Eu podia sentir tanto a dor das árvores destruídas quanto a que ele sentia...
Apertando fortemente Yarok, eu tentava algo impossível: fazê-lo voltar, poupar o acampamento. Recentemente, havia descoberto funções extraordinárias naquela pedra. Desejava imensamente que ela pudesse controlar o monstro, logo, em uma atitude talvez insana, permaneci no caminho dele e ordenei:
— Pare! — Toda a floresta pareceu atender ao meu comando. As árvores pararam de balançar, e até o vento cessou. — Retorne!
Para minha surpresa, mesmo por um instante, ele realmente parou. Vi os olhos gelados da criatura disseminando um brilho prateado semelhante a neve do alto das Harim Keseph. Não pareciam olhos perversos, entretanto não era prudente ficar na frente deles.
O behemot urrou espalhando dor e gemido. Pensei que não aguentaria aquele som quase insuportável. Num último resquício de consciência, joguei-me ao chão lamacento e implorei aos céus que um dos pés gigantes não me atingisse. O pé monstruoso afundou o chão a menos de um metro de minha cabeça lançando lama em todas as direções. Permaneci imóvel enquanto a criatura passava sobre mim. Senti um frio intenso quando ele passou, como naquela noite na cabana das Harim Keseph quando as pedras incandescentes se apagaram.
Mas o inverno foi com ele. Tão rápido quanto chegou, o behemot seguiu adiante se embrenhando na mata em seu trajeto de destruição. A cauda arrasou as cabanas improvisadas como se nem as tivesse percebido. Pelas costas, vi o sangue coagulado mesclado com barro sobre a grossa couraça natural da criatura.
O fascínio me fez ignorar mais uma vez a prudência. Eu precisava ir atrás da criatura. Foi quando ouvi os relinchos desesperados de um cavalo. Procurei por ele entre as árvores despedaçadas. O pobre e assustado animal, cercado por pedaços de troncos e galhos caídos, escoiceava o ar tentando se livrar daquela prisão. Mesmo o behemot estando mais distante, seus rugidos assustadores ainda eram percebidos. Com uma mão na pedra shoham e a outra sobre os pelos brancos e úmidos do animal, pude sentir o terror íntimo dele, semelhante ao meu. Com dificuldade, consegui acalmá-lo, comunicando-me com sua mente e sussurrando palavras serenas como havia aprendido a fazer. Segurei firmemente na sela rústica, e ele se deixou montar, então partimos atrás da trilha de destruição.
Logo percebi a dificuldade em acompanhar a criatura. Árvores caídas e monturos de pedras e lama tornaram-se obstáculos no caminho aberto pelo behemot. O cavalo precisou fazer um esforço monumental para saltar sobre troncos, sair de poças de lama e desviar de montes de pedra. Tive a sensação de que ele reagia com desconfiança aos meus comandos. Talvez meus próprios sentimentos conturbados, passados para ele pela pedra shoham, fossem responsáveis pelas atitudes dele. Fiz um esforço em controlar minha agitação. Tentei passar tranquilidade, mesmo sem a sentir...
Encontrei um caminho por entre as árvores, onde os monturos não atrapalhavam tanto a trajetória. A chuva fina e ácida castigava meu rosto devido ao meu descuido em não manter suficientemente o capuz azul sobre a cabeça, o que ocasionou um forte ardume na face, porém, naquele momento, toda minha concentração estava em encontrar a criatura ferida e entender a razão de ela estar ali. Antigas lições aprendidas na academia de Olamir passavam como os vislumbres de árvores que ficavam para trás. Aulas sobre a fauna e a flora de Olam, assim como informações sobre a origem, o tamanho e a ferocidade dos behemots. Meu pai acreditava que aquelas criaturas eram obras primas de El.
— Leviathan e o behemot foram as duas primeiras criaturas de El. — lembrei-me de uma das aulas. — A essência do fogo e do gelo estão dentro dessas criaturas. Mas ao contrário do dragão-rei, os behemots não têm ódio pelo ser humano, inclusive já lutaram ao lado dos homens no passado; os dragões-reis, entretanto, sempre estiveram com os shedins, ou melhor, lutaram ao lado deles, mas nunca respeitaram ninguém.
O próprio Melek liderara uma expedição secreta até o inverno dos behemots, muito antes da guerra. O objetivo daquela missão havia sido realizar pesquisas. O interesse de meu pai ia além do conhecimento anatômico ou dos hábitos alimentares dos behemots. Ele queria descobrir a origem do poder das criaturas. Magia dos primórdios. Mas, por algum motivo desconhecido, não retomou o projeto.
Eu cavalgava o mais rápido possível, mas não havia mais qualquer vislumbre do behemot, somente o rastro de árvores despedaçadas e a fina camada de gelo formada por onde ele passava; pistas que eu poderia seguir pelo menos até o final da floresta. Vi o clarão se aproximar e percebi a curta distância em que estava a última linha de árvores. Subitamente fiquei órfã da proteção delas e deparei-me com uma região de pântanos e vegetação baixa e seca. Gases cinzentos subiam do chão, árvores mortas se retorciam parcialmente submersas, e um cheiro repugnante afastava qualquer visitante do lugar.
Ainda de longe avistei a silhueta do behemot. Ele rugia em direção aos charcos como se estivesse lançando um desafio. Uma cena terrível: a boca aberta, as mandíbulas à mostra. Cada rugido parecia um chamado em alguma língua antiquíssima. Apesar de não entender a língua dele, de algum modo tinha percepção do que transmitia, graças às experiências do caminho da iluminação. Era algo sobre os primórdios, evocações de acontecimentos muito anteriores ao tempo em que os homens andavam sobre a terra. Era um clamor por vingança e justiça.
Então algo gigantesco moveu-se nos charcos. Percebi o súbito movimento, pois foi como se todo o pântano se mexesse. Uma cabeça horripilante com chifres que formavam uma coroa assustadora emergiu lentamente. Vi os olhos perversos, duas circunferências vermelhas incandescentes, que espreitaram a margem dos charcos. Com um misto de horror e fascínio, compreendi a situação. Estava ocorrendo uma batalha. A mais antiga de todas. Gelo contra fogo. O inverno contra o verão.
O corpo sinuoso de Leviathan acelerou sobre os charcos e, num instante, chamas terríveis jorraram em direção ao behemot, incandescendo a longa fileira de protuberância de seu dorso e cauda, deixando-a como cobre derretido. Então entendi a razão dos ferimentos dele.
Desviando-se da linha de fogo, o behemot se impulsionou para frente e seu corpo se afundou na terra pantanosa. O vapor de água ao redor subiu às alturas como a explosão de gêiseres. O chão se endureceu e ficou preto como alcatrão.
O cavalo estava assustado, e eu precisei usar todo o poder da pedra a fim de mantê-lo parado, pois naturalmente o animal desejava se manter longe daquele duelo de monstros. Eu tinha uma vaga noção dos motivos pelos quais os dois mais antigos inimigos duelavam, mas não por que o faziam naquele lugar. Sem dúvida era um sinal de desequilíbrio. Leviathan vivia nos pântanos quentes e salgados no extremo sul de Olam, e os behemots nos campos gelados do outro lado das montanhas, no extremo norte. E agora se enfrentavam na região intermediária de Olam, sem respeitar os antigos limites estabelecidos para eles no primeiro tratado do mundo e do submundo.
Leviathan fez um novo ataque, e o behemot, atingido pelas chamas, rugiu estrondosamente numa mescla de fúria e agonia. Nem ele — nem outra criatura — poderia suportar todo o fogo lançado pelo dragão. Mesmo assim, valente, marchou com os chifres pontiagudos em direção ao adversário, aproveitando alguns instantes que o dragão levaria até recompor o fogo. Soltou um rugido semelhante ao som de mil elefantes em disparada no campo de batalha.
Antes de ser alcançado, o dragão-rei deslizou sobre os charcos e decolou. Espantosamente, seus três conjuntos de asas impulsionaram o corpo sinuoso ao alto, e atiçaram as chamas que abrasavam o pântano. Contemplei a silhueta elevando-se e ultrapassando a camada cinzenta de vapor e fumaça, sem conseguir entender como um animal daquele tamanho conseguia voar.
Ao contrário do behemot, o dragão-rei exibia uma forma repugnante. Assemelhava-se a uma saraph, porém muito maior, com longas asas membranosas e olhos chamejantes. Ele girou no ar, preparando-se para cuspir fogo num novo e decisivo ataque. Mas antes que completasse o giro com seu corpo sinuoso, o behemot deu uma escaramuça com a cabeça e, para minha incredulidade, sua boca soltou uma espécie de líquido que brilhava como gelo.
Uma verdadeira chuva de lanças e farpas se formou quando o líquido endureceu e subiu em direção a Leviathan. Os objetos ganharam velocidade, e o dragão só com um movimento arriscado conseguiu se desviar, mesmo assim, uma das lanças atravessou uma das seis asas. O dragão perdeu altitude, pois ainda não estava estabilizado nas alturas. Suas cinco asas restantes não foram momentaneamente suficientes para impulsionar o corpo para o alto. O monstro despencou sobre os charcos espalhando água fervente e lama em todas as direções. Enquanto afundava no pântano, seus urros faziam estremecer a terra.
Outra chuva de gelo foi disparada da boca do behemot, mas, apesar de atingido, o dragão-rei foi veloz como só uma serpente consegue ser e revidou o gelo com seu fogo. Acreditei que era suficiente para incendiar uma cidade inteira ou mesmo uma floresta. O fogo venceu o gelo, e as labaredas avançaram outra vez em direção ao behemot.
A criatura do gelo se impulsionou com seus flancos poderosos para fugir do ataque, afundando-se o máximo possível no pântano, mas já não havia água suficiente, e a lama estava endurecida pelos sucessivos jatos de fogo e gelo.
A intensidade do fogaréu, capaz de derreter mármore, envolveu o behemot. Ele rugiu dolorosamente e lançou outro rio, porém, dessa vez, o gelo não se formou, e o líquido apenas levantou vapores intensos. A resposta de Leviathan foi nova onda de fogo que envolveu o behemot. Percebi que a criatura do gelo não ia resistir por muito tempo. Em desespero, ele se lançou outra vez contra o dragão. Aquela persistência surpreendeu Leviathan que não teve tempo de vomitar suas chamas. A atitude praticamente suicida surtiu efeito. Os braços e garras envolveram o pescoço do dragão-rei enquanto ele tentava encravar as mandíbulas no dorso do adversário.
Leviathan se debateu ao sentir os dentes terríveis atravessando sua couraça natural, e, por um momento, acreditei que o último dragão-rei tombaria sobre os charcos. Mas o corpo sinuoso se moveu vertiginosamente e enlaçou o oponente. A mistura de rugidos, enquanto os dois monstros se debatiam e os charcos tremiam, foi a cena mais assustadora que eu já havia contemplado. As asas gigantes se agitaram e, mesmo com uma delas ferida, o dragão-rei se elevou. Por um instante, os dois ficaram enlaçados e suspensos no ar, enquanto lutavam com dentes e garras. Então, foi a vez de o dragão encravar as mandíbulas incandescentes no pescoço do oponente, pondo fim ao duelo.
Quando Leviathan soltou o behemot, o corpo tombou sobre os charcos com um baque seco, pois já não havia água. Ainda tomado de fúria, o dragão cuspiu fogo sobre o cadáver gelado do behemot. Eu tremia de medo e perturbação ao ver todo aquele poder em ação.
Então, o dragão-rei me enxergou. Por causa da túnica, eu era só um pontinho azulado sob o cavalo, ao lado das árvores, mas tive a certeza de que ele havia me visto, pois rugiu estrondosamente em minha direção. Até hoje não sei o que eu senti enquanto apertava Yarok com tanta força a ponto de sangrar minha mão. Foi uma mescla de todos os sentimentos possíveis relacionados ao terror e ao desespero. Ele só precisava lançar um jato de fogo em minha direção para me consumir e boa parte da floresta atrás de mim. Em vez disso, por alguma razão, o maior dragão de Olam virou-se no ar e bateu cinco asas em direção ao norte.
Sentindo as batidas de meu coração ainda em disparada, vi a silhueta diminuir lentamente no horizonte. Demorou até que desaparecesse completamente. Em momento algum ele se voltou para o sul, onde há séculos vivia recluso nos pântanos salgados. Isso significava que Leviathan estava se movimentando livre mais uma vez por Olam, em busca de inimigos que desafiassem seu poder. Sobre os charcos, no meio do fogo e da fumaça escura, permaneceu o corpo em chamas de uma antiga criatura que havia tentado.
Olam havia mudado muito desde a queda de Olamir. Os opostos mais do que nunca se colocavam em rota de colisão. Luz e sombras, céus e terra, fogo e gelo, mundo e submundo. E eu sabia que era só o começo.
Hoje só resta um dragão-rei. — Lembrei-me de outra aula de meu pai. — Por sorte, é o mais poderoso de todos. Enquanto o antigo oráculo não se cumprir, e ele viver, esta Era não terminará.
Olhei ao redor e percebi que a neve havia parado de cair.