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Trecho. © Reimpressão autorizada. Todos os direitos reservados
― Aquele é o 518! Corre, Alissa! ― Samuel apontou para a frente e, sem perceber, jogou para trás o braço que segurava o guarda-chuva. Bingo! Uma das pontas acertou meu olho direito. Sufoquei um grito, meu globo ocular em chamas. Enxergar com os dois olhos debaixo daquele aguaceiro já estava difícil, só com um as coisas complicaram ainda mais.
Tínhamos que entrar logo naquele ônibus. Apertei um pouco mais as mãos ao redor das manoplas da cadeira de rodas e inclinei o tronco para a frente, reunindo um pouco mais de força ao empurrar. Se bem que, no fim das contas, não adiantava muito. O céu despencava em água e a calçada estava cheia de gente encharcada pelo temporal repentino, todos desesperados para ir para casa após a surpresa no fim do expediente.
Ninguém abriria caminho para nós.
― Licença, por favor.
As pessoas olhavam por cima do ombro e algumas arregalavam os olhos, se afastando o quanto podiam. Mas era muita gente. Quantas daquelas pessoas pegariam o 518? Eu não podia ficar sob aquele temporal com Sam, esperando o próximo ônibus. Demoraria no mínimo uns trinta minutos. Mexi os ombros, meio que para me certificar de que o case do meu violino continuava preso às minhas costas. Ele não vai aguentar muito tempo debaixo dessa chuva.
Quando já estávamos perto o suficiente do ponto do ônibus, parei ao perceber o rio de água que descia a toda velocidade pelo canto da rua e começava a invadir metade da calçada. As pessoas se amontoavam pelo lado mais alto, querendo chegar ao ponto que ficava em um relevo mais à frente, onde havia uma fila de ônibus parados. Para chegar lá, havia uma pequena rampa, que agora funcionava como uma espécie de barreira para a água. Graças aos céus. O elevador do ônibus funcionaria normalmente.
Em compensação, chegar lá seria um problema e tanto. Como ultrapassar a multidão?
― Hoje não é o nosso dia, Alissa ― Sam suspirou.
Olhei por cima do guarda-chuva do Homem-Aranha, para suas perninhas finas sentadas na cadeira e protegidas pela bermuda até os joelhos. Estavam ensopadas.
Nossas terças e quintas nunca eram fáceis. Eu levava Sam para a fisioterapia e ia para a escola de música, que ficava perto do consultório. Ida e volta, uns bons vinte minutos cada. Isso quando o elevador do ônibus não dava algum problema ou o coletivo estava muito cheio e não nos deixavam entrar.
Eu não ia permitir que aquilo acontecesse hoje. Abri um sorriso, cheguei o guarda-chuva para o lado e abaixei o pescoço até perto do ouvido do Sam:
― Com grandes poderes, vêm grandes responsabilidades.
Seus olhinhos, pretos como duas jabuticabas, sorriram. O vento trazido pela chuva bagunçava levemente seus cachinhos cor de madeira.
― Modo Parker, ativar?
― Ativar!
Assenti com a cabeça e, com toda a seriedade que aquele momento exigia, aprumei o corpo. Tentei a melhor cara de dignidade que uma garota de dezessete anos conseguia com um olho meio fechado e o cabelo desgrenhado pela chuva. Então, coloquei dois dedos de cada mão entre meus lábios, e um alto e estridente assobio escapou por eles.
― Tem uma criança em cadeira de rodas aqui! ― gritei. ― Abram caminho, por favor!
Ninguém moveu um pé. Tive que falar mais alto. Alguns olharam para trás e continuaram onde estavam. Outros me analisaram com aquela cara de “o que essa garota tá falando?”.
Inspirei fundo.
― Eu só preciso chegar ao ônibus e pedir ao motorista que abra a porta de trás, gente! Não vamos roubar o lugar de ninguém! ― Fiquei na ponta do pé e estiquei o pescoço, como se isso fosse ajudar minha voz a chegar mais longe.
Nada.
Estalei a língua.
Toda vez isso.
― Caramba! Ninguém aqui tem coração? Ele só tem nove anos! É uma criança!
Começou com um cara. Depois uma mulher. E, aos poucos, as pessoas começaram a se apertar um pouco mais próximo ao muro, abrindo espaço para nós. Ainda não era o suficiente para passarmos longe da água, mas já era alguma coisa. Não atrapalharia muito.
A empolgação para finalmente tirar meu irmão daquele temporal me fez apertar o passo. Meus tênis encontraram a corrente de água acinzentada que descia aos montes pela calçada e, ao terminar de subir a rampa que levava ao ponto final, senti meu pé direito passar por cima de uma coisa pegajosa. Antes que conseguisse processar o que estava acontecendo, soltei as mãos da cadeira e, como um pássaro tentando alçar voo, bati meus braços enquanto caía de costas sobre aquela água turva e fedorenta.